segunda-feira, 21 de junho de 2021

Pinos de boliche ao vento


Putz, hoje eu tô sem nem um real, acabei de gastar o que eu tinha com suprimentos das gatas. Sachês, biscoitos e uma areia sanitária da Hello Kitty de 27 reais, que elas odiaram e estão arremessando pela vastidão do meu kitnet em forma de protesto. Mas eu tenho um restinho de whisky e vou bolar uma bomba pra nós. Passei essas informações pro Rapha, que veio de Balneário Camboriú pra visitar o irmão dele nesse final de semana em Santos. Os gêmeos Rapha & Gui são meus amigos desde a adolescência, agora estamos com 30 e poucos anos. Eles estavam num churrasco na casa de outro amigo nosso. Eu não queria chegar sem grana e sem levar algo, então disse o que eu tinha de disponível.

Apenas vem, o Gui não tá bebendo e pode voltar dirigindo seu carro*. Vou sim, respondi o Rapha com a  foto do print do trajeto e tempo que o Waze mostrava no meu celular, Seriam 14min, eu estava no canal 1 e eles na ponta da praia.

Entrei no carro e ajeitei a garrafa de The Famous Grouse no banco do passageiro. Coloquei-a em pé no canto esquerdo, pra que ficasse mais próxima à base de encaixar o cinto de segurança. Assim, a parte diagonal e horizontal do cinto a segurariam. Meu copiloto de vidro.

Atravessei a cidade escutando The Final Countdown no Youtube pelo celular, esse mês eu não tinha pago o Spotify Premium. No meio do caminho lembrei que tinha um vidro de azeitonas roxas na minha geladeira, e cogitei voltar pra pegar. Mas ia demorar muito, então continuei o percurso.

Poucas quadras antes de chegar, um semáforo à minha frente fechou. Luz vermelha, 5 carros parados e um homem de chapéu preto estilo Chaplin, que parou embaixo do semáforo, entre nós (os carros) e a faixa de pedestre. Ele tem nas mãos o que parecem ser 4 pinos de boliche. Pôs o chapéu no chão e arremessou os pinos pra cima, um a um.

Eu odeio malabarismo, é uma ignorância odiosa que habita em mim, sem motivos racionais.  Ela não incomoda ninguém, ela existe mas ninguém sabe. Eu não grito e nem prego, apenas desgosto. Não conte comigo, eu também sou artista. Tô seguindo o meu caminho e me virando, causando prejuízo a mim e a aqueles que se aventuram em investir na minha carreira. Investimentos que até hoje não tiveram retorno, mas tem meu selo de promessa, que diz: Um dia pagarei de volta. Um dia vou vingar, virar, estourar, e peço que por favor não desistam de mim.

Sentado com a mão no volante, estou dando desculpas pra mim mesmo e explicando pra ninguém o motivo pelo qual não irei colaborar com esse artista. Farei um aceno com a cabeça, como quem diz um "não com tom de lamentação". E deixarei minha mão entre meu rosto e ombro, plana e aberta com a palma pra cima, como se carregasse uma bandeja vazia. Nesses 30 segundos que fiquei simulando minha interação com ele, os pinos de boliche já haviam feito a viagem de ida e volta até a mão dele algumas vezes. O semáforo deve abrir nos próximos segundos. 

O ritmo e altura dos arremessos se intensificam, o artista se aproxima do ato final, seus 4 pinos ao ar. E contrário do que acontece no boliche, se algum deles terminar o espetáculo no chão, seria uma derrota. O artista gira dando duas voltas em si mesmo e vai agachando num movimento circular, com leveza e rapidez, fluidez. Ele está agachado de forma graciosa. Um joelho no chão e a outra perna dobrada com o joelho abaixo do queixo. As mãos estão abertas acima da cabeça. Ele pega um pino, pega dois, e os junta em uma só mão. Ele pega o terceiro, e faz o mesmo processo.

Agora viria o fechamento majestoso que me faria sentir inveja de sua maestria artística. Mão aberta e dedos esticados, o Sol está a pino. Os raios solares atingem a mão dele, o pino também. Assim como ele não consegue pegar os raios, o pino age da mesma forma. Bate na mão dele, e quica tão rápido que quando os dedos se contraem pra encontrar a palma, o pino já pulou fora. Dando uma pirueta, o pino cai. E então tudo acontece ao contrário do que eu imaginava, porque o pino está no chão e é ele quem sente a frustração. O momento ficou em preto e branco. O artista paralisado, encolhido e imóvel, até o semáforo parece ter apagado seus três faróis. Um luto ao truque de desfecho triste e desastroso. O artista pega o pino do chão, e se levanta. Ele encara o pino que seguiu carreira solo como mergulhador de asfalto, dá uma breve sacudida nele, e o leva de encontro aos outro pinos.

Ele tira o chapéu e o suor em sua testa reflete a luminosidade do dia, enquanto caminha sem graça em direção aos carros. Nesse momento, ele não era um malabarista e eu esqueci meu desprezo desnecessário. Ele era uma pessoa que falhou, ele era um dos meus, um dos nossos. Somos falhos. Mais do que identificação, me senti representado. Meu olho umedeceu e uma crescente euforia acontecia dentro de mim. Soquei o teto interior do carro, celebrando essa sensação. O barulho estrondoso atraiu o olhar do artista. Eu abri a janela e o olhava com um sorriso. Era estranho, minutos atrás eu estava com um semblante antipático e olhar distante, voando nos céus da negatividade. E agora eu estava quase pendurado pra fora da janela do carro, segurando duas moedas que encontrei no interior dele. Com o punho fechado na direção dele, eu sorria de máscara, mas o topo das minhas bochechas revelava minha alegria. Ele veio agradecendo com um vai e vem, de trás pra frente com a cabeça e falando algo que parecia ser espanhol. Abri a mão e soltei uma moeda de 50 e outra de 25 centavos, que caíram dentro do chapéu que ele segurava ao lado da minha janela. Era o que eu tinha na hora. Olhando nos olhos dele, fiquei repetindo a palavra magnífico, magnífico, magnífico. Até que o som representasse o quanto achei aquele momento valioso, porque as moedas estavam longe de atingir o valor. Fiquei muito feliz de não ter voltado pra buscar as azeitonas.













*na verdade o carro é do meu irmão

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Trouxinha Tilintante

 Trouxinha Tilintante 

Potes de vidro de palmito, picles, azeitonas roxas e petiscetera(petisco + etc, expliquei mesmo, e dai?). Eu termino de consumir o que vem dentro, lavo e depois encho o pote de água. Fecho o pote e deixo algumas horas(dias se eu estiver deprimido) ali na minha pia. Aí eu esvazio, e o resto é previsível: tenho um bocado de potes de vidro. Um deles, eu guardo minhas moedas. Eu estava com dor e eu tinha moedas. E 4 reais no débito. O porquê de eu ser um adulto de 35 anos de idade, contando moedas e com 4 reais no meu saldo bancário? Isso é outra história, obrigado. Separei um punhado de moedas. 5, 10, 25 e algumas de 50 centavos. Peguei uma sacola plástica e amontoei as moedas no fundo do saco. Comprimindo-as, fui enrolando a base enquanto segurava as alças, até formar uma trouxinha.
A trouxinha tilintava. Fui até a farmácia carregando a trouxinha tilintante. Entrei e fui direto no fundo do corredor lateral esquerdo. Pois é lá onde ficam os advil, lisador, dipirona, magnésia bisurada e outras coisas que tem nessa parte das farmácias dessa rede específica. Escolhi o dipirona que ficasse entre o quanto eu quero parar de sentir dor e o quanto cabia no meu orçamento. Cheguei no caixa, pus as moedas no balcão e ele perguntou "É cliente? Quer me passar o cpf?" E falei "É só dipirona, não precisa. Acho que tem 4 reais aqui". O rapaz do caixa ajeitou a máscara como quem ajeita o óculos antes de ler algum documento importante. "Mas você sabe quanto tem aqui? Se é 4 reais mesmo, tá certinho?" Minha testa suava, pois sou péssimo com matemática e pequenos metais. Nervoso e duvidando dos meus próprios cálculos, gaguejei. "Eu acho que sim, mas posso ter contado errado". O rapaz à minha frente começou a tatear as moedas, separando algumas. Sem pressa ou precisão, suas mãos incertas. Ele começou a contar, esfregou o lado externo do punho na testa, ele também suava. Olhou pra mim e tentou confirmar mais uma vez, torcendo pelo meu certeiro "Sim, tenho certeza que tem tem 4 reais aí". Mas eu não tinha. E eu queria que tivessem 4 reais ali, ele também.
Ele mexia nas moedas e as reagrupava. Com a mesma postura de quem tentar desvendar um cubo mágico pela primeira vez. Aí que me bateu o pensamento "Há! O cara da farmácia também é ruim com matemática e pequenos metais. Eu não sou o único aqui". Agora eu tinha uma idéia do que passou pela cabeça dele quando pus a trouxinha tilintante em cima do balcão que ele operava, e não devia ser algo tão diferente de "Por favor, não me pede pra contar essas moedas. Não fala isso pra mim. Só me dá um valor, eu passo o que for e lido com isso depois. Qualquer coisa pra não contar moedas na frente de estranhos. Pior, estranhos que são clientes". Cliente, caixa, constrangimento mútuo. Ambas testas suadas.
Ele puxou pro lado interno do balcão e parecia ter um veredito. "Aqui tem 2, 75". Completei o restante no débito e apressei "Não precisa de notinha". Saí de lá usando a mesma sacolinha pra levar o medicamento dentro dela. E dentro de mim eu carregava mais duas coisas. A incerteza de que ele, assim como eu, fez o cálculo certo, e a leveza de que esse árduo processo tinha acabado. Nós havíamos sobrevivido. E eu pensava que, por alguns segundos enquanto ele contava, pude ver o pânico através da fina membrana de tranquilidade que ele vestia pra proteger sua postura profissional. Estávamos quase rompendo a quarta barreira e saindo do personagem. Ambos olharíamos pra câmera da "criação divina" e começaríamos a gritar.
No caminho de ida, o tilintar que antecedia nossos cálculos nervosos, como sinos de vento fazem antes da chuva(o suor seria de nossas testas(oh não, eu me peguei explicando de novo)), deu espaço ao som de poucos carros que passavam pela rua, rente à calçada onde agora eu fazia o caminho de volta. Sentindo a brisa do vento que corria pelo canal 1 em Santos, minha testa secava e eu torcia pra que a dele também.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

"Éramos mais velhos do que quando éramos amigos"
Hoje sonhei com o N, que por tempo indeterminado chamarei de NV. A intimidade que existia foi intimidada a extinguir-se. Eu tava numa festa, parecia ser numa galeria de arte, ou um dos espaços internos do parque Ibirapuera. Algo chique e simplista. Paredes brancas e bordas pretas. Entrei no sonho dando alguns passos, e duas pessoas se materializaram no canto direito do meu campo de visão. Se aproximavam pra cruzar o meu caminho, mas eu não esperava interação com nenhum desses corpos sem identidade. Então o sonho fez upload das informações da situação que estava pra acontecer. Aquele era o NV, e ele estava com algum outro comediante, não sei quem. Ambos usavam calça e camiseta preta, e não tinham cabeça. Entendendo quem era, e a menos de 1 metro de nos colidirmos, dei uns passos seguindo pra minha esquerda, queria evitá-los. Mas o NV se colocou no meu caminho. "Hey, e ai cara, calma. Tudo bem?" A cabeça dele apareceu do nada, encaixada certinha no pescoço, como se fosse decepado ao contrário. O ser adjacente sumiu de quadro, ficando apenas eu e o NV, e toda a tensão e confusão. Ele estava tentando cumprimentar um velho amigo. Éramos mais velhos do que quando éramos amigos. Me veio uma ânsia de vômito emocional. Antes que a interação padrão de "Quanto tempo, como está?" se estendesse por mais que 5 segundos, regurgitei minha dor. "Você me abandonou". Todas agulhas já procuradas em palheiros desde o surgimento da palavra "metáfora", espetavam o meu córtex cerebral. E as coisas que disse a seguir, foi o mais próximo que já cheguei de controlar um sonho. "Eu não sou o que disseram, não fiz o que falaram. Fiz muita coisa ruim, mas não fiz coisa muito ruim. Você deixou uma porta aberta na minha vida, uma porta aberta num dia de tempestade onde o vento era feito de facas" Eu chorava mas não sentia lágrimas. Acordei, não lembrava do sonho. Pus comida no pote das gatas e fiz um café. Fui pegar o cinzeiro na prateleira ao lado da cama, e me veio. Falei em voz alta "Merda... ah não meu. Sonhei com o N"

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

RIP Atchim

A primeira vez que tive contato com o politicamente correto, foi com 8 anos de idade. Era uma tarde sem nuvens e sem sol, e o céu branco em Santos.
Após cruzar a rua Bahia com o final da Azevedo Sodré, a caminho do Gonzaga, passei por um senhor de barba branca curta, cabelo branco médio formato M e camisa polo azul clara. Por dentro do óculos de armação vinho, seus olhos se contraíam com o espirro que havia dado, e eu disse "SAÚDE!" Como uma aspirina mentalizada em forma de palavra, disparei com toda positividade de um garoto de 8 anos da classe média que pouco conhecia das mazelas mundiais. "Saúde", em minha cabeça, essas palavras teriam o efeito de um feitiço benevolente, glóbulos brancos viriam dos céus em tunicas, brandando SAÚDE, SAÚDE e o senhor de camisa polo azul clara, estaria então remediado de todo tipo de resfriado, alergia ou infortúnio nasal que acarretasse em espirros.
Saúde, eu disse, e o senhor, freando o disco da minha ilusão, profere "Nunca diga a palavra saúde para alguém que acabou de espirrar, pois você está sugerindo que a pessoa está sem saúde, e isso é indelicado, e falta de educação". Fiquei paralisado por meio segundo, concordei acendo com a cabeça, para baixo e para cima e pra baixo de novo, pontuando duas vezes ao dizer "Desculpa".

Relembrando esse episódio hoje em dia, espero que realmente ele não tenha tido saúde, e tenha morrido dando espirros. Em sua lápide, diria: Aqui jaz Roberto, morreu espirrando e sem saúde. Sua última palavra foi "Atchim"

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Edifício Windsor

Eram meses de noites mal dormidas, 3 para ser exato, desde que se mudou para o novo apartamento. Acordava na madrugada com a nuca convulsionando de calafrio, na certeza que alguém havia chamado seu nome, “Gabe” “Gabe, Gabe, Ga..”, olhava para a parede à sua frente, na direção dos dedos dos pés, gelados, úmidos, pálidos, apontavam para cima como estalagmites na cama. Em sua mente havia se teleportado para uma caverna.
Encarava a parede como um breu num buraco, de onde seus maiores medos escalariam da escuridão para lhe arrancar a paz e o pulso. Faria um cordão de isolamento com seu intestino, nunca havia tido intestino preso e agora estaria cercado pelo próprio, sem ter como sair. Cadáveres não saem muito. Mas, havia algo saindo da parede, a caverna revelava aquilo que espreitara nas sombras. A parede, tinha algo saindo da parede
Puta merda, é um fantasma e ele tá olhando pra mim. Igualzinho na tv, azul desbotado, olheiras e olhos cor de monitor de celular desligado, reflete igual

Ele olha pra mim, é recíproco. Pergunto se é um fantasma, ele confirma balançando a cabeça, num sim.
Uma sensação horripilante toma conta dos meus pensamentos, então faço a pergunta que me separa do meu maior medo, mas preciso saber, então disparo a questão “Há quanto tempo você está aqui?” 

“Desde que você chegou neste apartamento, eu estou aqui”

Silêncio. Imito o quadro O Grito

“Você está há 3 meses neste apartamento, comigo aqui, e não pagou aluguel?! Em nome do senhor, pague sua parte!”
O fantasma olha confuso “Senhor… eu sou fantasma, mas sou ateu, não acredito em Deus”
Explico “Não, Deus não. Valdir, senhor Valdir, é o cara que aluga esse apartamento. E me responda, qual o motivo de você ficar chamando meu nome?
O Fantasma, acanhado, diz: “Bem, é que esse é meu… era meu quarto, sou apegado a este cômodo, e você ronca muito, e alto. Aí tenho que ficar lhe acordando. E não consigo dormir de luz apagada”

“Se você me ajudar a pagar o aluguel, terei dinheiro para pagar a conta de luz e pagar o tratamento para minha apneia.”. Digo para o fantasma, que, sorrindo, pega sua carteira e me diz:

“Quantos cruzeiros devo da minha parte?”

Vai ser uma noite longa!

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Eu & o cheiro

6 dias sem desodorante
6 dias sem usar desodorante. Meu desodorante acabou, fiz uma lista de itens em falta no meu arsenal cotidiano de um ser humano urbano, e algo a mais, como pequenos desumidificadores. Bolor, você me causa dor, pelo menos quando está em minhas roupas e bags dos meus instrumentos musicais.
Desodorante, desumidificadores, flanelas, lustra móveis, bananas, essa é a lista. Vou até o mercado e compro tudo, menos o desodorante. Me dei conta quando retornei ao lar, e é fim do dia, a chegada da minha insônia está próxima (minha insônia trabalha num sistema de rotação lunar, gira em torno de si mesma enquanto completa translações à minha volta), não precisarei de desodorante mais hoje. E em caso de saída emergencial, tenho polvilho granado, água, sabonete e roupas limpas, condições ideais pra me arrumar para uma entrevista de emprego, ou 12, e depois de falhar em todas, tomar um banho pra tentar esquecer um pouco de minha própria existência, enquanto a água escorre no rosto, que fica escondido como uma caverna coberta por cataratas de shampoo. Não voltei pra comprar desodorante esta noite, nem na seguinte, nem na próxima, ou na manhã que seguiu, fui na base do granado, como se meu sovaco fosse viciado em cocaína de polvilho, Pablo Granado Escobar.
Mesmo com banho, sabonete e granado, comecei a sentir um cheiro engraçado, enquanto sentado com meu violão, treinando um dedilhado. Um cheiro forte, que não tem medo ou receio de existir, um cheiro que não se deixa ser ignorado, um cheiro com personalidade, tudo que eu não tenho. Um odor me atinge as narinas e pinta as paredes do cérebro, como sangue espirrando numa porta branca em um filme do Tarantino. Me acostumei com sua presença, acreditei que ele me tornava mais forte e original, não me escondo mais atrás do DES em desodorante, chega de des. Sem desodorante, sem desistir.
-lembrando que vivenciei essa experiência sem sair de casa, foi durante o processo de composição do meu novo álbum, que sai em dezembro. Então nesse texto, não há coadjuvantes sendo incomodados pela explosão de aromas que estava acontecendo em mim, que tem sido minha aura catártica de auto aceitação
Quinto dia: estou escrevendo a letra de uma música do álbum novo, em minha cadeira de rodinhas dentro do meu estúdio, em frente a uma mesa de concreto moldada na parede, que também é de concreto e tijolos, um lugar rústico(antigamente esse espaço era um ateliê de cerâmicas). Comecei a sentir o mesmo cheiro, porém sob outra perspectiva. Cheguei à conclusão, que a meu ver(cheirar): o odor que vem da minha axila sem usar nenhum tipo de desodorante(além do polvilho), me remete a feijão queimado, aquela hora que você esquece o feijão no fogo aceso, começa a queimar e grudar no fundo da panela, é esse cheiro, e não me incomoda.
Mas desde então, toda vez que sentia, ficava alerta, como se houvesse alguma panela a ser tirada as pressas do fogo. Comecei a ficar perturbado.
Numa madrugada, acordei pra ir ao banheiro, estiquei o braço pra apertar a descarga, o cheiro subiu ao rosto, cujo as pálpebras estavam quase encostadas, e ao atingir o nariz, os olhos esbugalharam, a boca foi abrindo como um portão, do estômago subiu um vendaval de bafo, vociferando o grito que veio: FEIJÃO!
Na manhã do sexto dia, decidi que esse seria o nosso último juntos, eu e o cheiro. Passei nossas horas finais sem camisa, cozinhei feijão, induzindo uma hamonização aromática na cozinha, dancei valsa comigo mesmo no curto espaço entre a pia o armário suspenso na parede(onde guardo o pó de café, coador e filtro). De forma crescente, o apito da panela de pressão se fez presente, e finalizei a valsa, abrindo os braços em cruz, comecei a rodopiar aumentando a velocidade gradualmente, acompanhando o crescer do apito. Na última rodopiada, vi meu reflexo na parede metálica da panela, e fiz contato visual com ele. Enxerguei ali, outro eu, um que aprendeu a se aceitar, e entendeu o saco de carne, órgãos e ossos que sou(mos). Uma máscara para viver numa zona de conforto por até 48 ou 72hrs. E quando quando não restar mais nada, estivermos nus e crus, sem tempo para tabus sobre eu, tu, nos, vos, eles e seus cus, haverá apenas nosso cheiro bruto, como uma única atmosfera. E eu vi tudo isso ali, no reflexo. Terminei minha última ciranda em 360. E ainda tonto, desliguei o fogo. A orquestra gasosa comprimida silenciou, minha cabeça foi parando de girar, como um carrossel em sua última viagem, e eu estava com fome e decidido: Aprendi minha lição, porém, não aguento mais a pressão de sentir o cheiro, e pensar que em algum lugar, uma panela vai estourar.
Banho tomado, estômago cheio, pensamento formado, vou comprar desodorante no mercado. Mas antes, farei uma lista.
Fim

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

NUL - Nação Unida das Lagartixas

Sexta feira

Só pra não dizer que não escrevi nada, escreverei, escrever, escrvr, scrv, scr, scro scrro, socorro, pronto, agora foi.

Hoje choveu aqui em Santos, estou sentado dentro do meu estúdio, barra escritório, barra lugar. Amo essas janelas, quadradas e largas, abro a veneziana de madeira, depois a janela de vidro(de correr pra cima), dá direto pro breu do mato. Bambus e bichos, é lindo. E temporário, em breve saio daqui. E um dia lembrarei com nostalgia, chorarei disfarçando se essa lembrança me atingir em público.

Só não sei o que fazer com essas lagartixas cagando nas minhas coisas

Não irei matá-las, mas também não é legal cagarem nos meus instrumentos musicais. Porra, lagartixas, qual é a de vocês? E não se façam de coitadas, pois estou sabendo sobre os assassinatos horrendos que vocês tem cometido contra a população de aranhas e moscas, uma guerra suja entre vocês, e não vou me meter.

Mas vi no Google "Como espantar lagartixa sem machuca-las? Porque ela tá cagando nas minhas coisas, e isso me deixa transtornado, porém quero uma solução que beire à uma negociação democrática" e dei search.
Encontrei uns resultados, com uma técnica em comum: botar cascas de ovos rachadas, divididas ao meio, não amassadas, não esmigalhadas, não em 5 pedaços, mas rachadas ao meio, isso é muito importante, bem no meio, e semi aberta, sem nada dentro. Dizia que isso afastaria as lagartixas. Pois elas veriam os ovos rachados exatamente no meio, sem nada dentro, estrategicamente posicionados em lugares onde não haviam ovos antes, e pensarão "Tem um predador aqui, e ele tá comendo os ovos dos ninhos espontâneos desse lugar. E vocês sabem como predadores são, eles não comem pão de forma com borda, e nem ovos, se a casca não estiver quebrada de forma precisa e simétrica, bem ao meio". Então comi 6 ovos cozidos, caminhei da cozinha de dentro da casa, até o estúdio, que é uma casinha ao lado de fora de casa, um imóvel agregado. Tem um caminho de uns 50 metros, a céu aberto, o chão tem largos azulejos de pedra, cor azul marinho e cinza. Fiz esse trajeto levando as cascas dentro do bolso do moletom canguru, e fui peidando.
Entrei no estúdio, coloquei 3 pares de cascas em cima de um armário de alumínio. O armário tem uns 2m e dois andares, cada um com uma portinha laranja que guarda um compartimento largo no interior(nesse dois andares, guardo meus pedais e microfones), e agora em cima desse armário metálico, tem ovos, muito bem colocados. E no outro canto do escritório, barra estúdio, em cima de uma prateleira branca, pendurada na parede crua de tijolos. O estúdio inteiro é meio rústico, tijolo, cimento, vedações, porta e armários, bancadas e cascas de ovos, agora três pares em cima da bancada e 3 pares em cima do armário.

2 dias depois, os cocôs diminuíram, eram uns 7 por dia, caiu pra 1, alguns dias, 2.

Penso que isso faz parte de uma super liga de lagartixas unidas pela perpetuação da espécie. Foi assim, uma reunião do conselho de lagartixas, pauta: como garantir a sobrevivência e continuidade da espécie, contra o gigante império opressor e desenfreado de inseticidas?

Era necessário agir com discrição, viralização sem atacar o inimigo, e eficácia. A melhor maneira de viralizar sem usar veneno, é através da informação.

-Alguma lagartixa aqui sabe usar o Google?

Duas lagartixas haviam passado uns 8 semestres em uma escola técnica de TI ali perto, e manjavam de softwares, sites e senhas. Missão iniciada. Foram até a escola, escolheram uma sala vazia, e invadiram. As duas lagartixas operavam uma máquina, cada uma. Eram computadores de mesa, e enquanto acessavam a internet, digitando informações no wikipedia, e respostas para sites de busca, narravam em voz alta, cada movimento, para as outras lagartixas que estavam ali presentes, assistindo com olhos fixos nas telas. As mesmas, aprendiam, e quando estavam seguras e confiantes para usarem o conhecimento que acabara de lhes ser passado, pegavam as senhas e se dirigiam às outras cpus. E todas disseminaram as redes com a informação das cascas quebradas.
Conforme digitavam, saltaram de risos tímidos, para altas gargalhadas.
Choravam de rir, confabulando detalhes específicos, e se divertiam com o potencial criativo de si mesmas ansiosas para iludirem os humanos, vê-los a cozinhar os ovos, descascá-los, ter a precaução para coloca-los da maneira exata, como descrito no Yahoo respostas.
Se olharam, contaram até 3, e todos apertaram ENTER.

Está online.

Contiveram seus risos, e combinaram entre si:
Toda vez que um humano posicionasse os ovos, a cada 5 lagartixas presentes no local, 3 teriam que ir embora. As remanescentes na residência, teriam que seguir uma dieta restrita de minúsculas mariposas, contém fibras, são leves, como alface, facilita o controle intestinal. se fossem 2, 3 ou 4 lagartixas, e os ovos são invocados, todas precisariam ir embora, tem que ser no mínimo 5, abaixo disso, é pé & rabo na parede, porta, poste, e boa sorte na busca de um novo lar.

Enquanto a regra for respeitada, não haverá um veneno de larga escala voltado pra nós, que tenha propaganda no horário nobre, com direito a animação e dublagem feita por humanos(eles vivem se apropriando de tudo, inclusive da nossa voz).

Deixa esse luxo hollywoodiano para as baratas e o Aedes.

Então pus ovos, não são meus.