segunda-feira, 17 de maio de 2021

Trouxinha Tilintante

 Trouxinha Tilintante 

Potes de vidro de palmito, picles, azeitonas roxas e petiscetera(petisco + etc, expliquei mesmo, e dai?). Eu termino de consumir o que vem dentro, lavo e depois encho o pote de água. Fecho o pote e deixo algumas horas(dias se eu estiver deprimido) ali na minha pia. Aí eu esvazio, e o resto é previsível: tenho um bocado de potes de vidro. Um deles, eu guardo minhas moedas. Eu estava com dor e eu tinha moedas. E 4 reais no débito. O porquê de eu ser um adulto de 35 anos de idade, contando moedas e com 4 reais no meu saldo bancário? Isso é outra história, obrigado. Separei um punhado de moedas. 5, 10, 25 e algumas de 50 centavos. Peguei uma sacola plástica e amontoei as moedas no fundo do saco. Comprimindo-as, fui enrolando a base enquanto segurava as alças, até formar uma trouxinha.
A trouxinha tilintava. Fui até a farmácia carregando a trouxinha tilintante. Entrei e fui direto no fundo do corredor lateral esquerdo. Pois é lá onde ficam os advil, lisador, dipirona, magnésia bisurada e outras coisas que tem nessa parte das farmácias dessa rede específica. Escolhi o dipirona que ficasse entre o quanto eu quero parar de sentir dor e o quanto cabia no meu orçamento. Cheguei no caixa, pus as moedas no balcão e ele perguntou "É cliente? Quer me passar o cpf?" E falei "É só dipirona, não precisa. Acho que tem 4 reais aqui". O rapaz do caixa ajeitou a máscara como quem ajeita o óculos antes de ler algum documento importante. "Mas você sabe quanto tem aqui? Se é 4 reais mesmo, tá certinho?" Minha testa suava, pois sou péssimo com matemática e pequenos metais. Nervoso e duvidando dos meus próprios cálculos, gaguejei. "Eu acho que sim, mas posso ter contado errado". O rapaz à minha frente começou a tatear as moedas, separando algumas. Sem pressa ou precisão, suas mãos incertas. Ele começou a contar, esfregou o lado externo do punho na testa, ele também suava. Olhou pra mim e tentou confirmar mais uma vez, torcendo pelo meu certeiro "Sim, tenho certeza que tem tem 4 reais aí". Mas eu não tinha. E eu queria que tivessem 4 reais ali, ele também.
Ele mexia nas moedas e as reagrupava. Com a mesma postura de quem tentar desvendar um cubo mágico pela primeira vez. Aí que me bateu o pensamento "Há! O cara da farmácia também é ruim com matemática e pequenos metais. Eu não sou o único aqui". Agora eu tinha uma idéia do que passou pela cabeça dele quando pus a trouxinha tilintante em cima do balcão que ele operava, e não devia ser algo tão diferente de "Por favor, não me pede pra contar essas moedas. Não fala isso pra mim. Só me dá um valor, eu passo o que for e lido com isso depois. Qualquer coisa pra não contar moedas na frente de estranhos. Pior, estranhos que são clientes". Cliente, caixa, constrangimento mútuo. Ambas testas suadas.
Ele puxou pro lado interno do balcão e parecia ter um veredito. "Aqui tem 2, 75". Completei o restante no débito e apressei "Não precisa de notinha". Saí de lá usando a mesma sacolinha pra levar o medicamento dentro dela. E dentro de mim eu carregava mais duas coisas. A incerteza de que ele, assim como eu, fez o cálculo certo, e a leveza de que esse árduo processo tinha acabado. Nós havíamos sobrevivido. E eu pensava que, por alguns segundos enquanto ele contava, pude ver o pânico através da fina membrana de tranquilidade que ele vestia pra proteger sua postura profissional. Estávamos quase rompendo a quarta barreira e saindo do personagem. Ambos olharíamos pra câmera da "criação divina" e começaríamos a gritar.
No caminho de ida, o tilintar que antecedia nossos cálculos nervosos, como sinos de vento fazem antes da chuva(o suor seria de nossas testas(oh não, eu me peguei explicando de novo)), deu espaço ao som de poucos carros que passavam pela rua, rente à calçada onde agora eu fazia o caminho de volta. Sentindo a brisa do vento que corria pelo canal 1 em Santos, minha testa secava e eu torcia pra que a dele também.