segunda-feira, 21 de junho de 2021

Pinos de boliche ao vento


Putz, hoje eu tô sem nem um real, acabei de gastar o que eu tinha com suprimentos das gatas. Sachês, biscoitos e uma areia sanitária da Hello Kitty de 27 reais, que elas odiaram e estão arremessando pela vastidão do meu kitnet em forma de protesto. Mas eu tenho um restinho de whisky e vou bolar uma bomba pra nós. Passei essas informações pro Rapha, que veio de Balneário Camboriú pra visitar o irmão dele nesse final de semana em Santos. Os gêmeos Rapha & Gui são meus amigos desde a adolescência, agora estamos com 30 e poucos anos. Eles estavam num churrasco na casa de outro amigo nosso. Eu não queria chegar sem grana e sem levar algo, então disse o que eu tinha de disponível.

Apenas vem, o Gui não tá bebendo e pode voltar dirigindo seu carro*. Vou sim, respondi o Rapha com a  foto do print do trajeto e tempo que o Waze mostrava no meu celular, Seriam 14min, eu estava no canal 1 e eles na ponta da praia.

Entrei no carro e ajeitei a garrafa de The Famous Grouse no banco do passageiro. Coloquei-a em pé no canto esquerdo, pra que ficasse mais próxima à base de encaixar o cinto de segurança. Assim, a parte diagonal e horizontal do cinto a segurariam. Meu copiloto de vidro.

Atravessei a cidade escutando The Final Countdown no Youtube pelo celular, esse mês eu não tinha pago o Spotify Premium. No meio do caminho lembrei que tinha um vidro de azeitonas roxas na minha geladeira, e cogitei voltar pra pegar. Mas ia demorar muito, então continuei o percurso.

Poucas quadras antes de chegar, um semáforo à minha frente fechou. Luz vermelha, 5 carros parados e um homem de chapéu preto estilo Chaplin, que parou embaixo do semáforo, entre nós (os carros) e a faixa de pedestre. Ele tem nas mãos o que parecem ser 4 pinos de boliche. Pôs o chapéu no chão e arremessou os pinos pra cima, um a um.

Eu odeio malabarismo, é uma ignorância odiosa que habita em mim, sem motivos racionais.  Ela não incomoda ninguém, ela existe mas ninguém sabe. Eu não grito e nem prego, apenas desgosto. Não conte comigo, eu também sou artista. Tô seguindo o meu caminho e me virando, causando prejuízo a mim e a aqueles que se aventuram em investir na minha carreira. Investimentos que até hoje não tiveram retorno, mas tem meu selo de promessa, que diz: Um dia pagarei de volta. Um dia vou vingar, virar, estourar, e peço que por favor não desistam de mim.

Sentado com a mão no volante, estou dando desculpas pra mim mesmo e explicando pra ninguém o motivo pelo qual não irei colaborar com esse artista. Farei um aceno com a cabeça, como quem diz um "não com tom de lamentação". E deixarei minha mão entre meu rosto e ombro, plana e aberta com a palma pra cima, como se carregasse uma bandeja vazia. Nesses 30 segundos que fiquei simulando minha interação com ele, os pinos de boliche já haviam feito a viagem de ida e volta até a mão dele algumas vezes. O semáforo deve abrir nos próximos segundos. 

O ritmo e altura dos arremessos se intensificam, o artista se aproxima do ato final, seus 4 pinos ao ar. E contrário do que acontece no boliche, se algum deles terminar o espetáculo no chão, seria uma derrota. O artista gira dando duas voltas em si mesmo e vai agachando num movimento circular, com leveza e rapidez, fluidez. Ele está agachado de forma graciosa. Um joelho no chão e a outra perna dobrada com o joelho abaixo do queixo. As mãos estão abertas acima da cabeça. Ele pega um pino, pega dois, e os junta em uma só mão. Ele pega o terceiro, e faz o mesmo processo.

Agora viria o fechamento majestoso que me faria sentir inveja de sua maestria artística. Mão aberta e dedos esticados, o Sol está a pino. Os raios solares atingem a mão dele, o pino também. Assim como ele não consegue pegar os raios, o pino age da mesma forma. Bate na mão dele, e quica tão rápido que quando os dedos se contraem pra encontrar a palma, o pino já pulou fora. Dando uma pirueta, o pino cai. E então tudo acontece ao contrário do que eu imaginava, porque o pino está no chão e é ele quem sente a frustração. O momento ficou em preto e branco. O artista paralisado, encolhido e imóvel, até o semáforo parece ter apagado seus três faróis. Um luto ao truque de desfecho triste e desastroso. O artista pega o pino do chão, e se levanta. Ele encara o pino que seguiu carreira solo como mergulhador de asfalto, dá uma breve sacudida nele, e o leva de encontro aos outro pinos.

Ele tira o chapéu e o suor em sua testa reflete a luminosidade do dia, enquanto caminha sem graça em direção aos carros. Nesse momento, ele não era um malabarista e eu esqueci meu desprezo desnecessário. Ele era uma pessoa que falhou, ele era um dos meus, um dos nossos. Somos falhos. Mais do que identificação, me senti representado. Meu olho umedeceu e uma crescente euforia acontecia dentro de mim. Soquei o teto interior do carro, celebrando essa sensação. O barulho estrondoso atraiu o olhar do artista. Eu abri a janela e o olhava com um sorriso. Era estranho, minutos atrás eu estava com um semblante antipático e olhar distante, voando nos céus da negatividade. E agora eu estava quase pendurado pra fora da janela do carro, segurando duas moedas que encontrei no interior dele. Com o punho fechado na direção dele, eu sorria de máscara, mas o topo das minhas bochechas revelava minha alegria. Ele veio agradecendo com um vai e vem, de trás pra frente com a cabeça e falando algo que parecia ser espanhol. Abri a mão e soltei uma moeda de 50 e outra de 25 centavos, que caíram dentro do chapéu que ele segurava ao lado da minha janela. Era o que eu tinha na hora. Olhando nos olhos dele, fiquei repetindo a palavra magnífico, magnífico, magnífico. Até que o som representasse o quanto achei aquele momento valioso, porque as moedas estavam longe de atingir o valor. Fiquei muito feliz de não ter voltado pra buscar as azeitonas.













*na verdade o carro é do meu irmão