sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Eu & o cheiro

6 dias sem desodorante
6 dias sem usar desodorante. Meu desodorante acabou, fiz uma lista de itens em falta no meu arsenal cotidiano de um ser humano urbano, e algo a mais, como pequenos desumidificadores. Bolor, você me causa dor, pelo menos quando está em minhas roupas e bags dos meus instrumentos musicais.
Desodorante, desumidificadores, flanelas, lustra móveis, bananas, essa é a lista. Vou até o mercado e compro tudo, menos o desodorante. Me dei conta quando retornei ao lar, e é fim do dia, a chegada da minha insônia está próxima (minha insônia trabalha num sistema de rotação lunar, gira em torno de si mesma enquanto completa translações à minha volta), não precisarei de desodorante mais hoje. E em caso de saída emergencial, tenho polvilho granado, água, sabonete e roupas limpas, condições ideais pra me arrumar para uma entrevista de emprego, ou 12, e depois de falhar em todas, tomar um banho pra tentar esquecer um pouco de minha própria existência, enquanto a água escorre no rosto, que fica escondido como uma caverna coberta por cataratas de shampoo. Não voltei pra comprar desodorante esta noite, nem na seguinte, nem na próxima, ou na manhã que seguiu, fui na base do granado, como se meu sovaco fosse viciado em cocaína de polvilho, Pablo Granado Escobar.
Mesmo com banho, sabonete e granado, comecei a sentir um cheiro engraçado, enquanto sentado com meu violão, treinando um dedilhado. Um cheiro forte, que não tem medo ou receio de existir, um cheiro que não se deixa ser ignorado, um cheiro com personalidade, tudo que eu não tenho. Um odor me atinge as narinas e pinta as paredes do cérebro, como sangue espirrando numa porta branca em um filme do Tarantino. Me acostumei com sua presença, acreditei que ele me tornava mais forte e original, não me escondo mais atrás do DES em desodorante, chega de des. Sem desodorante, sem desistir.
-lembrando que vivenciei essa experiência sem sair de casa, foi durante o processo de composição do meu novo álbum, que sai em dezembro. Então nesse texto, não há coadjuvantes sendo incomodados pela explosão de aromas que estava acontecendo em mim, que tem sido minha aura catártica de auto aceitação
Quinto dia: estou escrevendo a letra de uma música do álbum novo, em minha cadeira de rodinhas dentro do meu estúdio, em frente a uma mesa de concreto moldada na parede, que também é de concreto e tijolos, um lugar rústico(antigamente esse espaço era um ateliê de cerâmicas). Comecei a sentir o mesmo cheiro, porém sob outra perspectiva. Cheguei à conclusão, que a meu ver(cheirar): o odor que vem da minha axila sem usar nenhum tipo de desodorante(além do polvilho), me remete a feijão queimado, aquela hora que você esquece o feijão no fogo aceso, começa a queimar e grudar no fundo da panela, é esse cheiro, e não me incomoda.
Mas desde então, toda vez que sentia, ficava alerta, como se houvesse alguma panela a ser tirada as pressas do fogo. Comecei a ficar perturbado.
Numa madrugada, acordei pra ir ao banheiro, estiquei o braço pra apertar a descarga, o cheiro subiu ao rosto, cujo as pálpebras estavam quase encostadas, e ao atingir o nariz, os olhos esbugalharam, a boca foi abrindo como um portão, do estômago subiu um vendaval de bafo, vociferando o grito que veio: FEIJÃO!
Na manhã do sexto dia, decidi que esse seria o nosso último juntos, eu e o cheiro. Passei nossas horas finais sem camisa, cozinhei feijão, induzindo uma hamonização aromática na cozinha, dancei valsa comigo mesmo no curto espaço entre a pia o armário suspenso na parede(onde guardo o pó de café, coador e filtro). De forma crescente, o apito da panela de pressão se fez presente, e finalizei a valsa, abrindo os braços em cruz, comecei a rodopiar aumentando a velocidade gradualmente, acompanhando o crescer do apito. Na última rodopiada, vi meu reflexo na parede metálica da panela, e fiz contato visual com ele. Enxerguei ali, outro eu, um que aprendeu a se aceitar, e entendeu o saco de carne, órgãos e ossos que sou(mos). Uma máscara para viver numa zona de conforto por até 48 ou 72hrs. E quando quando não restar mais nada, estivermos nus e crus, sem tempo para tabus sobre eu, tu, nos, vos, eles e seus cus, haverá apenas nosso cheiro bruto, como uma única atmosfera. E eu vi tudo isso ali, no reflexo. Terminei minha última ciranda em 360. E ainda tonto, desliguei o fogo. A orquestra gasosa comprimida silenciou, minha cabeça foi parando de girar, como um carrossel em sua última viagem, e eu estava com fome e decidido: Aprendi minha lição, porém, não aguento mais a pressão de sentir o cheiro, e pensar que em algum lugar, uma panela vai estourar.
Banho tomado, estômago cheio, pensamento formado, vou comprar desodorante no mercado. Mas antes, farei uma lista.
Fim

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

NUL - Nação Unida das Lagartixas

Sexta feira

Só pra não dizer que não escrevi nada, escreverei, escrever, escrvr, scrv, scr, scro scrro, socorro, pronto, agora foi.

Hoje choveu aqui em Santos, estou sentado dentro do meu estúdio, barra escritório, barra lugar. Amo essas janelas, quadradas e largas, abro a veneziana de madeira, depois a janela de vidro(de correr pra cima), dá direto pro breu do mato. Bambus e bichos, é lindo. E temporário, em breve saio daqui. E um dia lembrarei com nostalgia, chorarei disfarçando se essa lembrança me atingir em público.

Só não sei o que fazer com essas lagartixas cagando nas minhas coisas

Não irei matá-las, mas também não é legal cagarem nos meus instrumentos musicais. Porra, lagartixas, qual é a de vocês? E não se façam de coitadas, pois estou sabendo sobre os assassinatos horrendos que vocês tem cometido contra a população de aranhas e moscas, uma guerra suja entre vocês, e não vou me meter.

Mas vi no Google "Como espantar lagartixa sem machuca-las? Porque ela tá cagando nas minhas coisas, e isso me deixa transtornado, porém quero uma solução que beire à uma negociação democrática" e dei search.
Encontrei uns resultados, com uma técnica em comum: botar cascas de ovos rachadas, divididas ao meio, não amassadas, não esmigalhadas, não em 5 pedaços, mas rachadas ao meio, isso é muito importante, bem no meio, e semi aberta, sem nada dentro. Dizia que isso afastaria as lagartixas. Pois elas veriam os ovos rachados exatamente no meio, sem nada dentro, estrategicamente posicionados em lugares onde não haviam ovos antes, e pensarão "Tem um predador aqui, e ele tá comendo os ovos dos ninhos espontâneos desse lugar. E vocês sabem como predadores são, eles não comem pão de forma com borda, e nem ovos, se a casca não estiver quebrada de forma precisa e simétrica, bem ao meio". Então comi 6 ovos cozidos, caminhei da cozinha de dentro da casa, até o estúdio, que é uma casinha ao lado de fora de casa, um imóvel agregado. Tem um caminho de uns 50 metros, a céu aberto, o chão tem largos azulejos de pedra, cor azul marinho e cinza. Fiz esse trajeto levando as cascas dentro do bolso do moletom canguru, e fui peidando.
Entrei no estúdio, coloquei 3 pares de cascas em cima de um armário de alumínio. O armário tem uns 2m e dois andares, cada um com uma portinha laranja que guarda um compartimento largo no interior(nesse dois andares, guardo meus pedais e microfones), e agora em cima desse armário metálico, tem ovos, muito bem colocados. E no outro canto do escritório, barra estúdio, em cima de uma prateleira branca, pendurada na parede crua de tijolos. O estúdio inteiro é meio rústico, tijolo, cimento, vedações, porta e armários, bancadas e cascas de ovos, agora três pares em cima da bancada e 3 pares em cima do armário.

2 dias depois, os cocôs diminuíram, eram uns 7 por dia, caiu pra 1, alguns dias, 2.

Penso que isso faz parte de uma super liga de lagartixas unidas pela perpetuação da espécie. Foi assim, uma reunião do conselho de lagartixas, pauta: como garantir a sobrevivência e continuidade da espécie, contra o gigante império opressor e desenfreado de inseticidas?

Era necessário agir com discrição, viralização sem atacar o inimigo, e eficácia. A melhor maneira de viralizar sem usar veneno, é através da informação.

-Alguma lagartixa aqui sabe usar o Google?

Duas lagartixas haviam passado uns 8 semestres em uma escola técnica de TI ali perto, e manjavam de softwares, sites e senhas. Missão iniciada. Foram até a escola, escolheram uma sala vazia, e invadiram. As duas lagartixas operavam uma máquina, cada uma. Eram computadores de mesa, e enquanto acessavam a internet, digitando informações no wikipedia, e respostas para sites de busca, narravam em voz alta, cada movimento, para as outras lagartixas que estavam ali presentes, assistindo com olhos fixos nas telas. As mesmas, aprendiam, e quando estavam seguras e confiantes para usarem o conhecimento que acabara de lhes ser passado, pegavam as senhas e se dirigiam às outras cpus. E todas disseminaram as redes com a informação das cascas quebradas.
Conforme digitavam, saltaram de risos tímidos, para altas gargalhadas.
Choravam de rir, confabulando detalhes específicos, e se divertiam com o potencial criativo de si mesmas ansiosas para iludirem os humanos, vê-los a cozinhar os ovos, descascá-los, ter a precaução para coloca-los da maneira exata, como descrito no Yahoo respostas.
Se olharam, contaram até 3, e todos apertaram ENTER.

Está online.

Contiveram seus risos, e combinaram entre si:
Toda vez que um humano posicionasse os ovos, a cada 5 lagartixas presentes no local, 3 teriam que ir embora. As remanescentes na residência, teriam que seguir uma dieta restrita de minúsculas mariposas, contém fibras, são leves, como alface, facilita o controle intestinal. se fossem 2, 3 ou 4 lagartixas, e os ovos são invocados, todas precisariam ir embora, tem que ser no mínimo 5, abaixo disso, é pé & rabo na parede, porta, poste, e boa sorte na busca de um novo lar.

Enquanto a regra for respeitada, não haverá um veneno de larga escala voltado pra nós, que tenha propaganda no horário nobre, com direito a animação e dublagem feita por humanos(eles vivem se apropriando de tudo, inclusive da nossa voz).

Deixa esse luxo hollywoodiano para as baratas e o Aedes.

Então pus ovos, não são meus.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Como feridas cascudas em um vulcão


Santos, 1 de outubro
O pôr do Sol incendiava uma tela azul. Laranja e rosa agiam em sincronia como sabres de luz, inflando nuvens de cores gritantes, que resistiam abafando-as sob camadas externas em tom de carvão, como feridas cascudas em um vulcão. Fiquei paralisado por vontade própria na calçada da avenida Francisco Glicério, assistindo a essa cena como se fosse um cinema a céu aberto.
Fiquei preocupado de alguém reparar em mim ali, parado na beira da calçada, olhando pro céu, desocupado, parece o tipo de coisa que gente louca faz. Sabe? Ficar olhando pro além, com o que chamam de “cara de paisagem”, pois era isso que estava acontecendo, a paisagem e eu éramos ligados pela passagem de cores no céu, e eu devia estar quase babando, travado, com a pupila dilatada. Olhando pro céu, doido de paisagem, desses que fala no celular, que na verdade não é um aparelho telefônico, e sim um sapato, mas na nossa mente, é um FlipPhone(lembro de quando tive um desses, com display azul, era um azul irado. Não irado “bacana”, mas irado mesmo, um azul bravo, cansado de ser só azul, como o azul que estou vendo agora, que vivendo transcendência que sempre almejou, ele não sabia que o momento seria assim, mas sabia que se sentiria assim) 

-Se concentra, as pessoas que estão passando devem te achar um maluco, doido, assim, olhando pro céu, maluco mesmo. Dessa vez sua paranóia provavelmente está certa. 

Tudo que eu faço, penso que vão achar que sou maluco. 
Eu acordo: Acordei, vão achar que sou maluco.

E pra não parecer um maluco, desses de primeira classe de malucos, os que olham pro céu, e acredite em mim, eu queria muito continuar olhando pra esse céu, queria que esse arco íris agressivo entrasse num loop infinito e as cores nunca se mesclassem definitivamente, que elas ficassem eternamente no quase. Mas as pessoas não param de passar e achar que sou maluco, parado olhando o céu. Comecei minha estratégia de disfarce de maluco, ao invés de apenas olhar para o céu, comecei a olhar para os carros que vinham na avenida, analisando os modelos e placas, fingindo que to esperando um uber, e de vez em quando olho pro céu, porque não vou ficar olhando pra todos os carros, né? Eu pedi um carro só, e esse carro será de apenas um modelo, com uma única placa. Faço uma cara de frustrado, sem paciência, de todos automóveis parados no semáforo, nenhum é o que pedi, olho pro céu. Estou tranquilo, pois sou mais um ser humano normal esperando um motorista de uber na avenida, e por acaso, o céu está lindo com um por do Sol esplendoroso, mas não tenho tempo de olhar para ele durante todo seu espetáculo, pois estou esperando meu uber imaginário. Mas tá tudo bem, porque isso não é coisa de maluco, maluco é quem fica realmente olhando pro céu torcendo pra que nunca chegue a hora de haver apenas estrelas, isso é coisa de maluco, e não quem fica ponderando quantas estrelas a menos irei pontuar esse motorista que está atrasado, porque ele não existe. E esse é o principal motivo do atraso, porque eu o fabriquei na minha mente, criei o carro, o motorista, mas não criei a motivação pra ele levar esse trabalho autônomo a sério. E por isso que o carro dele foi roubado, porque ele tava dirigindo fumando maconha, resolveu parar numa rua pra tirar um cochilo dentro do carro, depois de gastar a grana da sua ultima corrida no drive thru do McDonalds comprando 2 combos BigTasty. Comeu o lanche, pôs todo o lixo na sacola, deixou no chão do banco do co-piloto, e no som do carro toca o acústico do Nirvana, que ele selecionou pelo celular que tá conectado por bluetooth. Deitou no banco traseiro e mandou uma soneca nervosa, ainda com molho do BigTasty nos cantos da boca. Acordou assustado ouvindo pancadas no vidro, sua visão ainda embaçada pela embriaguez de lanches e cannabis, viu apenas o contorno de um cara de boné, batendo com um revólver preto na sua janela. Em desespero, abriu a porta do lado oposto onde estava o bandido, e saiu correndo pela rua na direção em que apontava a placa traseira de seu carro, e virou à  direita na primeira esquina que viu, seu coração em bpms mil começou a acalmar pois ele avistou um carro de polícia na mesma quadra em que fez a curva correndo. Ele se aproxima do policial, explica o ocorrido, narrando sua fuga de maneira heróica. Enquanto o policial, com uma expressão impaciente e irônica, interrompe  e diz “Você estava naquele corsa preto sedan, não era? Eu passei pelo seu carro, que estava estacionado numa área proibida de estacionar, e ai dei umas voltas, 15mins depois, o seu automóvel ainda estava estacionado de forma irregular, então avisei a CT. O agente foi averiguar e reparou que o motorista estava dormindo no banco de trás, ele bateu na sua janela pra te acordar, porque seu carro estava prestes a ser guinchado. A arma que você acha que viu, era o rádio dele, e seu carro não foi roubado, ele foi guinchado. E mais uma coisa, você saiu correndo e deixou a porta aberta, o agente ao fechar, sentiu um cheiro forte de maconha vindo do interior do veículo, e aí ele viu no banco traseiro, um enorme tablete de maconha. Você era o único dentro do automóvel, que está no seu nome. 

Enquanto o motorista do uber é levado, dentro da viatura, algemado no banco de trás, ele enxerga, entre o contorno escuro dos bancos dianteiros, bem além do vidro e do capo da viatura, um céu rosado com o pôr-do-Sol mais intenso e emocionante que já viu, e cai num transe de tristeza, cansaço, plenitude e paz pós-desespero, enquanto pensa "Esse pôr-do-Sol está tão lindo, poderia ser o último". O policial aponta para um rapaz que está parado na calçada, alguns metros à frente da viatura e diz “Mais um maluco na rua, olha esse aí, olhando fixamente pro céu, esse é doido, deve ser primo seu”. Conforme a viatura passa por ele, seu olhar desce em diagonal passeando pelo carro do policial, e então seus olhos encontram o do motorista de uber no banco de trás. O trânsito segue, viatura passa, o rapaz maluco da calçada fica pra trás, e o motorista segue no banco traseiro da viatura. Ambos atingem a plenitude, pois agora sabem que são um só, e sua única preocupação é existir em minha imaginação.