terça-feira, 13 de novembro de 2018

Como feridas cascudas em um vulcão


Santos, 1 de outubro
O pôr do Sol incendiava uma tela azul. Laranja e rosa agiam em sincronia como sabres de luz, inflando nuvens de cores gritantes, que resistiam abafando-as sob camadas externas em tom de carvão, como feridas cascudas em um vulcão. Fiquei paralisado por vontade própria na calçada da avenida Francisco Glicério, assistindo a essa cena como se fosse um cinema a céu aberto.
Fiquei preocupado de alguém reparar em mim ali, parado na beira da calçada, olhando pro céu, desocupado, parece o tipo de coisa que gente louca faz. Sabe? Ficar olhando pro além, com o que chamam de “cara de paisagem”, pois era isso que estava acontecendo, a paisagem e eu éramos ligados pela passagem de cores no céu, e eu devia estar quase babando, travado, com a pupila dilatada. Olhando pro céu, doido de paisagem, desses que fala no celular, que na verdade não é um aparelho telefônico, e sim um sapato, mas na nossa mente, é um FlipPhone(lembro de quando tive um desses, com display azul, era um azul irado. Não irado “bacana”, mas irado mesmo, um azul bravo, cansado de ser só azul, como o azul que estou vendo agora, que vivendo transcendência que sempre almejou, ele não sabia que o momento seria assim, mas sabia que se sentiria assim) 

-Se concentra, as pessoas que estão passando devem te achar um maluco, doido, assim, olhando pro céu, maluco mesmo. Dessa vez sua paranóia provavelmente está certa. 

Tudo que eu faço, penso que vão achar que sou maluco. 
Eu acordo: Acordei, vão achar que sou maluco.

E pra não parecer um maluco, desses de primeira classe de malucos, os que olham pro céu, e acredite em mim, eu queria muito continuar olhando pra esse céu, queria que esse arco íris agressivo entrasse num loop infinito e as cores nunca se mesclassem definitivamente, que elas ficassem eternamente no quase. Mas as pessoas não param de passar e achar que sou maluco, parado olhando o céu. Comecei minha estratégia de disfarce de maluco, ao invés de apenas olhar para o céu, comecei a olhar para os carros que vinham na avenida, analisando os modelos e placas, fingindo que to esperando um uber, e de vez em quando olho pro céu, porque não vou ficar olhando pra todos os carros, né? Eu pedi um carro só, e esse carro será de apenas um modelo, com uma única placa. Faço uma cara de frustrado, sem paciência, de todos automóveis parados no semáforo, nenhum é o que pedi, olho pro céu. Estou tranquilo, pois sou mais um ser humano normal esperando um motorista de uber na avenida, e por acaso, o céu está lindo com um por do Sol esplendoroso, mas não tenho tempo de olhar para ele durante todo seu espetáculo, pois estou esperando meu uber imaginário. Mas tá tudo bem, porque isso não é coisa de maluco, maluco é quem fica realmente olhando pro céu torcendo pra que nunca chegue a hora de haver apenas estrelas, isso é coisa de maluco, e não quem fica ponderando quantas estrelas a menos irei pontuar esse motorista que está atrasado, porque ele não existe. E esse é o principal motivo do atraso, porque eu o fabriquei na minha mente, criei o carro, o motorista, mas não criei a motivação pra ele levar esse trabalho autônomo a sério. E por isso que o carro dele foi roubado, porque ele tava dirigindo fumando maconha, resolveu parar numa rua pra tirar um cochilo dentro do carro, depois de gastar a grana da sua ultima corrida no drive thru do McDonalds comprando 2 combos BigTasty. Comeu o lanche, pôs todo o lixo na sacola, deixou no chão do banco do co-piloto, e no som do carro toca o acústico do Nirvana, que ele selecionou pelo celular que tá conectado por bluetooth. Deitou no banco traseiro e mandou uma soneca nervosa, ainda com molho do BigTasty nos cantos da boca. Acordou assustado ouvindo pancadas no vidro, sua visão ainda embaçada pela embriaguez de lanches e cannabis, viu apenas o contorno de um cara de boné, batendo com um revólver preto na sua janela. Em desespero, abriu a porta do lado oposto onde estava o bandido, e saiu correndo pela rua na direção em que apontava a placa traseira de seu carro, e virou à  direita na primeira esquina que viu, seu coração em bpms mil começou a acalmar pois ele avistou um carro de polícia na mesma quadra em que fez a curva correndo. Ele se aproxima do policial, explica o ocorrido, narrando sua fuga de maneira heróica. Enquanto o policial, com uma expressão impaciente e irônica, interrompe  e diz “Você estava naquele corsa preto sedan, não era? Eu passei pelo seu carro, que estava estacionado numa área proibida de estacionar, e ai dei umas voltas, 15mins depois, o seu automóvel ainda estava estacionado de forma irregular, então avisei a CT. O agente foi averiguar e reparou que o motorista estava dormindo no banco de trás, ele bateu na sua janela pra te acordar, porque seu carro estava prestes a ser guinchado. A arma que você acha que viu, era o rádio dele, e seu carro não foi roubado, ele foi guinchado. E mais uma coisa, você saiu correndo e deixou a porta aberta, o agente ao fechar, sentiu um cheiro forte de maconha vindo do interior do veículo, e aí ele viu no banco traseiro, um enorme tablete de maconha. Você era o único dentro do automóvel, que está no seu nome. 

Enquanto o motorista do uber é levado, dentro da viatura, algemado no banco de trás, ele enxerga, entre o contorno escuro dos bancos dianteiros, bem além do vidro e do capo da viatura, um céu rosado com o pôr-do-Sol mais intenso e emocionante que já viu, e cai num transe de tristeza, cansaço, plenitude e paz pós-desespero, enquanto pensa "Esse pôr-do-Sol está tão lindo, poderia ser o último". O policial aponta para um rapaz que está parado na calçada, alguns metros à frente da viatura e diz “Mais um maluco na rua, olha esse aí, olhando fixamente pro céu, esse é doido, deve ser primo seu”. Conforme a viatura passa por ele, seu olhar desce em diagonal passeando pelo carro do policial, e então seus olhos encontram o do motorista de uber no banco de trás. O trânsito segue, viatura passa, o rapaz maluco da calçada fica pra trás, e o motorista segue no banco traseiro da viatura. Ambos atingem a plenitude, pois agora sabem que são um só, e sua única preocupação é existir em minha imaginação.